sábado, 10 de março de 2012

Meu Retrato Enquanto Crítico

Penso que há três maneiras de entrarmos na obra e arte:

1. Uma primeira, historicista, que se preocupa tanto com as práticas de composição como as de recepção da obra. Que busca compreender os mecanismo pelos quais ela se relaciona ao seu tempo, nele sempre localizando-a, observando, inclusive, o momento histórico em que foi produzida por meio dessa arte, do modo mesmo como compreende a penetração desse momento histórico/cultural na confecção desta. Há alguns pecados nesta prática investigativa: submeter a arte ao seu contexto histórico/social/cultural/político, desprezando a arte enquanto confecção, enquanto dimensão própria, caldeira onde borbulham muitos tempos históricos, cânones e tradições (e as múltiplas possibilidades de pervertê-las e/ou fundi-las e/ou hierarquizá-las, etc. e etc.)

2. Uma segunda, atualista, que se arma dos conceitos, das ferramentas contemporâneas a fim de inferir/extrair no/do passado novas possibilidades de compreensão que não nos saltavam anteriormente aos olhos, não porque lá não estivessem, mas porque , simplesmente, não tínhamos ferramentas para observá-las: de certa forma, faltava-nos ou microscópio, ou telescópio, ou centrífuga, ou reagentes químicos necessários à visualização. O pecado deste portal à obra de arte é a desleitura: o fato de, com o avanço da medicina, descartarmos a existência empírica de uma doença, como as “escrófulas” por exemplo, não nos dá o direito e resumir a história do poder mágico-curativo dos reis franceses até determinado século, sob o simples rótulo de “ignorância”, ou “manipulação ideológica a serviço das classes dominantes”. Se assim o fizéssemos, desprezaríamos todo um sistema de funcionamento da cultura que envolve o poder divino da monarquia (importantíssimo à compreensão de manifestações artísticas e históricas) e, isto feito, encobriríamos com muita leviandade, a obra “Os Reis Taumaturgos” de Marc Bloch.

3. Uma terceira, relacional, buscaria na obra pontos de contato, quer formais, quer de conteúdo (ou ainda de contexto histórico) com outras obras e outros documentos, manipulando-os habilmente, como o iluminador de uma moderna festa de discotecagem, ou como Des Esseintes combinava sabores e sons em seus sinestésicos licores, no romance As Avessas: não como alguém que busca uma verdade a priori na obra, mas como quem estabelece links com outros documentos (artísticos ou não) a fim de fazê-lo parir conceitos e propostas, independentemente, de suposta “vontade do autor” ou “vontade do texto”. Assemelha-se com uma espécie de saudável tirania da leitura (aproximando-se do conceito de “texto-máquina” de Deleuze, ou das idéias de Richard Rorthy quando debate com Umberto Eco em Interpretação e Superinterpretação.) O pecado desta, é a famosa síndrome dos “alhos e dos bugalhos”, ou como muito bem me definiu um amigo professor de literatura norte-americana: “se você tomar qualquer dois (ou mais) livros de uma biblioteca, você pode relacioná-los, mas isso não implica que a relação estabelecida seja coerente”. O desafio/limite desta porta à obra de arte é: muita erudição, muita clareza (explicitando o tipo de relação que se propõe), e muita habilidade no trato com o objeto (além do domínio “total” das muitas possibilidades teóricas e críticas).

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Mas este é um texto autobiográfico. Falo isso por mim mesmo. Sinceramente, as três possibilidades são extremamente sedutoras e cada uma, a seu modo, possui seus problemas e seus sabores. Só consigo sair desse Cnossos, em minha esquizofrenia, quando vislumbro o domínio dessas três diferentes abordagens para compô-las numa análise plural mas, cuidadosamente, não homogeneizante: só consigo admirar a crítica que se supõe polifônica e que, tramando e tencionando fios, sabe puxá-los e amarrá-los com harmonia, mas sem a hipocrisia eclética de que todos os caminhos levam Roma. Quero a crítica dodecafônica, que se sabe fragmentária, que, como numa dança bélica de hoplitas, sabe a hora de fundir-se numa falange, e o momento de pluralizar-se em flancos. O que restaria dessa máquina de guerra? A arte. Primeiro porque creio, religiosamente, que a arte forte é sempre maior que sua crítica; segundo porque a crítica só pode ser (mais) completa se lança mão do mecanismo de produção da arte que toma: é a arte a grande mãe dessa máquina de guerra.

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